quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Correspondência expedida, ou uma carta em defesa do rio e do diálogo

"Belo Horizonte, 18/12/07

Patrus Amigo

Há tempo que nossos caminhos seguem por praias distantes. Nem por isto, deixei de acompanhá-lo na nobre missão de ajudar a abrir, para boa parcela do povão, o acesso a uma vida mais digna, embora em meio aos paradoxos da política.
Talvez por você ser homem do poder, mais distante se fez, mais inacessível o julguei também por alguma escolha frente a minhas prioridades na ação pastoral. Legítimo. Distante, então, eu me mantive no respeito, porém nunca na indiferença.
Agora, porém, ao tomar conhecimento de uma entrevista sua relativa ao gesto de dom Cappio, julguei de meu dever enviar-lhe algumas linhas, externando o que se agita em meu íntimo.
Com oração e no respeito, você discorda de sua decisão gesto. É um direito seu. Enquadrar tal gesto nesta moldura :"Se não for feito o que eu quero, eu me mato", para mim, ressoa como uma tremenda injustiça.
Jesus e o Batista jejuaram pelo Reino. Jesus até foi, conscientemente, ao encontro da morte, sendo relativamente fácil não ir até Jerusalém e evitar cair nas mãos de seus inimigos.
No tempo do Golpe Militar - por discordância em nível de consciência - houve quem se tenha levantado em protesto. Muitos foram presos, torturados e mortos por discordarem de regimes ditatoriais, angariando com isso todo nosso respeito por sua coragem, desprendimento e amor ao bem comum. Ghandi, Luther King, Chico Mendes e Nelson Mandela e tantos outros se fizeram bons exemplos.
O que eu quero dizer é que dom Cappio não se sacrifica por um capricho pessoal, uma escolha de intransigência frívola. Com suas colocações, Patrus, você o expôs ao ridículo. Ele, porém, é um seguidor de Francisco e defensor do São Francisco - não de uma "coisa" - o rio - mas de uma rede complexa de relações: o povo sofrido do semi-árido em sua relação com a água do rio, fonte de vida digna para tantos.
Quem fechou a questão, não foi dom Cappio, foi o governo. Quando você diz que ele foi intransigente, solicitando a paralisação da obra da transposição, para iniciar o diálogo, é bom saber que esta é a condição básica para não tornar a questão irreversível, já que a intransigência para o diálogo e a insistência no início das obras vem da parte do governo. Se a obra é polêmica, e todos sabem que é, antes do início da mesma é preciso esgotar todas as análises técnicas e políticas e todas as avaliações sócio-econômicas e ambientais. Quem prometeu a dom Cappio fazê-lo foi o governo quando da primeira greve de fome. Portanto, cabe a esse agir com prudência e não ditatorialmente com total desprezo ao bem comum na recusa à participação popular.
Agora, você, como homem do governo, alega que "em estado permanente de oração e vigília" torce "para que tudo se resolva da melhor maneira possível". Que tal, se rezasse um pouco menos e se dignasse a convocar seu amigo o presidente para que aceite assentar-se à mesa para dialogar com representantes do povo?
Intransigente não me parece dom Cappio, mas é o poder político deste país que, autocraticamente, toma as decisões unilateralmente, sem a necessária "relação de diálogo, de entendimento" pregada por ele durante anos de campanha. Dois anos, dom Cappio esperou... Isto é, as lideranças do meio do povo esperaram. Agora, você vê arbitrariedade na exigência de "haver a interrupção imediata das obras da transposição do rio". Também aqui vale o ditado: "Mostra-me diante de qual janela olhas a realidade - e eu te direi quem és".
Você, como eu também - em princípio - não somos contra transposição de rios. Mas acredito que, também como eu, você sabe que o assunto é polêmico e como tal precisa ser analisado sobre todos os aspectos para não serem repetidos equívocos como os das obras da ferrovia do aço e da transamazônica que consumiram fábulas de recursos, fizeram crescer nossa dívida, impactaram o meio ambiente e além de não trazer benefícios à nossa gente continuam inacabadas.
Você se abstém de julgar a intenção do bispo. Ora, só faltava esta. É exatamente a intenção que está em questão: A quem beneficiaria a transposição? Salvar o rio, salvar o povo e não beneficiar, prioritariamente, grandes empresas e o agronegócio é a intenção das lideranças da população local. No momento, falta ao governo a vontade e a capacidade de convencer, de forma inequívoca, de que o objetivo da transposição é beneficiar o bem comum, garantir a sobrevivência das populações ribeirinhas e salvar a fauna e a flora.
Você lembra: "O presidente tem autoridade...". É o que aconteceu com Hitler e tantos, até em nossos dias. Investidos do poder, julgam-se donos do povo e de sua vida. Um simples voto na urna representaria parâmetro legal e constitucional para tudo o que o presidente achar justo. O poder legislativo e o judiciário podem retirar-se em férias. O presidente se basta.
Não é verdade que "os processos contra a transposição foram discutidos e que batalhas judiciais foram vencidas". O rio não é do governo, é da nação e uma nação não é nada sem seu povo.
Enfim, você apela à Igreja instituição em que o auto-extermínio não se permite, a não ser... Quem julga "essas situações muitíssimas especiais"? Não deveriam ser as pessoas do poder e, sim, as da base. Vivi na guerra e vi testemunhos belíssimos. Vivi no Golpe Militar e me deixei edificar por membros do laicato. Hierarquia... Raríssimas exceções. O povo produz e festeja os santos mártires.
Enfim, Patrus amigo, o bem máximo não é tanto a vida em si mas, antes, o sentido que nós lhe damos. E em nome desse sentido, pode ser legítimo sacrificar a vida ou uma dimensão essencial da mesma, como nós religiosos somos convidados a fazer na vida religiosa e vocês no casamento e - com muita nobreza - também na política e na ciência em vista do bem comum.
Vou terminar. Senti-me honrado poder rabiscar-lhe estas linhas em solidariedade a dom Cappio. Imitá-lo não me cabe. Admirá-lo é uma honra. Defender seu bom nome e a dignidade de seu propósito é meu dever de cristão. Viver nestes dias perigosos e desafiantes me parece uma bênção, uma nobre missão.
Desejo-lhe sucesso em sua atuação política. Conte com minha solidariedade. Na amizade de sempre. Frei Cláudio van Balen. Igreja do Carmo / BH. Pároco".
Mustafá!

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